TIAURORA
Quando eu tinha três anos de idade, minha mãe separou-se do meu pai e mudamos para Marília-SP. Naquela época, aquela cidade chamava-se Alto Cafezal. Com a chegada da linha férrea da EFCP, em 1928, em homenagem ao romance de Thomaz Antônio Gonzada – o lugarejo passou a chamar-se Marília. Todas as ruas da cidade eram de terra à vista que nada tinham a ver com a famosa frase dos portugueses, em 1500. Não havia calçamento e nem construções de alvenaria. Todas as casas eram de madeira. A nossa tinha um salão com várias portas de frente. Minha mãe, costureira, a única da cidade, comprou várias máquinas de costura e com muitas auxiliares, trabalhavam com pertinácia, a fim de dar conta das encomendas. Meu brinquedo predileto era com retalhos do chão e carretéis de linha vazios. Para variar, brincava com dois amigos vizinhos de nomes Zezé e Armandinho. Os dois tinham uma tia, enfermeira no Centro de Saúde, solteirona e de nome Aurora. Naquela época, moça de família não usava maquiagem. Com muita discrição, as moçoilas usavam um pó de arroz embalado numa latinha, de nome Lady e vendido nas farmácia. O batom era sempre discreto e na maçã do rosto um ligeiro traço de "rouge". Mas, a tia Aurora não!!! Era diferente. Além de ser muito bonita, maquiava-se bastante. Virava uma verdadeira estrela de cinema. Eu, muito criança, ficava fascinado pelo rosto da tia Aurora. Muito carinhosa, quando chegava do serviço, estávamos sempre brincando na terra da rua. Zezinho e Armandinho corriam ao seu encontro e, como prêmio, recebiam beijos e abraços. Eu ficava na berlinda. Apenas olhava com os olhos compridos. Um dia, resolvi enfrentar aquele desafio. Falei com os meus dois companheiros: Vocês têm uma sorte danada! Tia Aurora chega e beija vocês e nem olha pra mim. Eles, imediatamente, sairam correndo para dentro da casa e gritaram: "Tia Aurora, tia Aurora, o waldemar falou que quer um beijo seu!!". Muito ingênuo, fiquei apavorado. Encostei-me na parede de madeira e pensei: agora vou ser fuzilado. Tia aurora saiu com uma toalha nas mãos e um sorriso ma-ra-vi-lho-so. Perguntou-me: "Waldemar, você quer mesmo um beijo meu?" Esfregando minhas costas à parede de madeira, consegui coragem e desabafei: "Eu queeeeeeeeero!" Jogou a toalha no ombro, levantou-me do chão com um longo e apertado abraço, deu-me um beijo forte no meu rosto e soltou-me no chão. Saí correndo igual um buscapé, cheio de felicidade e gritando: Mamãe, mamãe, ganhei um beijo da tia Aurora! Todas as moças do salão de costura, cairam em gargalhadas e minha mãe falou-me: "Vá olhar no espelho". Corri para o mesmo e fiquei mais feliz. Em meu rosto, estampado aquela linda marca de batom. A partir daquele dia, eu não queria mais tomar banho e nem lavar o rosto. Em 1934 mudamos para o Rio de Janeiro e nunca mais vi a tia Aurora. Em 1952/3 fui trabalhar como cirurgião dentista em Jundiaí-SP. Todos os sábados ía à capital paulista para comprar material. Ficava hospedado na casa de uma família mariliense que me viu crescer. Um filho da casa, de nome Wanderley Giacomini falou-me: "A tia Aurora está morando aqui em São Paulo". Dei um pulo de alegria e tive esta resposta: Vou levá-lo agora de carro. Primeiro telefonou e a tia Aurora confirmou a sua presença. Ao chegarmos em sua casa, foi aquele festival de alegria. Abracei e beijei várias vezes as rugas profundas do seu rosto. Depois meditei: A natureza é perfeita mas o tempo é implacável. As fisionomias do passado, deseparecem no presente. Adeus tia Aurora! Hoje deve estar morando ao lado de Deus com toda sua beleza terrena. Gosto de contar retalhos reais da minha vida. W@ldem@r.